
O apóstolo Paulo foi o primeiro grande missionário do cristianismo para o Ocidente. Foi ele que transpôs os limites judaizantes da nova religião e a introduziu na Europa. Para muitos, Paulo é considerado um homem pragmático, durão e conservador, mesmo para os padrões da época. Mas esse mesmo Paulo escreveu alguns dos mais lindos textos sobre o amor. Neste breve artigo, pretendo expor o texto de Romanos, capítulo 8, versículos 31 a 39.
O texto está estruturado em forma de conjuntos de perguntas e argumentos. As perguntas são retóricas e pressupõem as respostas. Apenas no final do texto, Paulo apresenta a grande resposta a todas as perguntas. Nos dois primeiros conjuntos, os argumentos precedem as perguntas. Nos três conjuntos posteriores, as perguntas antecedem os argumentos. Além dessa estrutura, chamo a atenção para a repetição da preposição “por”, que ocorre 4 vezes (8.31b, 32a, 34b e 36b). Ela indica mediação (gr. hyper, “em lugar de”), para garantir que Deus é favorável ao seu povo. A palavra “amor” e seus derivados também ocorrem 4 vezes (8.35a, 36, 37 e 39).
Analisemos os conjuntos de perguntas e argumentos. Como as perguntas são retóricas, em cada uma delas vou destacar a resposta subentendida e a resposta polêmica (contrária à resposta subentendida). Essas respostas serão afirmativas ou negativas, conforme a intenção do autor. O texto começa com uma pergunta de transição — “Que diremos, pois, à vista destas coisas?” (8.31a).
O primeiro conjunto de pergunta e argumento trata do medo da derrota: “Quem será contra nós?” Pressupõe risco de oposição. A resposta subentendida é negativa: não, ninguém poderá se opor aos amados por Deus. Mas há outra possibilidade de resposta que deve ser analisada — a resposta polêmica positiva: sim, os amados por Deus sofrerão oposição de todo tipo. Mesmo que dediquemos nossa vida ao amor, é possível que isso desperte raiva e desprezo. Vejam o exemplo do Padre Júlio Lancelotti, que dedica a vida aos pobres e recebe ameaças de investigação e até de morte. Na 1ª Epístola de Pedro consta a pergunta: “Quem lhes fará mal se forem zelosos do bem?” (1Pe 3.13). A resposta subentendida é “ninguém”. Mas ele prossegue, “mas ainda que venham a sofrer…” (3.14). Ou seja, amar não garante vida pacífica. O argumento de Paulo para responder negativamente é que Deus está favor dos que amam, portanto, ainda que haja oposição, nenhuma oposição prevalecerá. “Maior é aquele que está em nós do que aquele que está no mundo.”
O segundo conjunto de pergunta e argumento aborda o medo da necessidade: “Deus nos dará todas as coisas?” A resposta subentendida é positiva: sim, Deus nos dará todas as coisas. Mas aqui também devemos analisar a resposta polêmica negativa: Não, não teremos todas as coisas. Viver uma vida de amor não garante provisão. O próprio texto em análise menciona várias privações: “tribulação”, “angústia”, “perseguição”, “fome”, “nudez”, “perigo”, “espada” (8.35b). O argumento de Paulo para a resposta positiva é “quem dá o mais, dá o menos”. Se Deus deu-se a si mesmo (a doação máxima), ele jamais nos negará os bens de que precisamos para viver (doações menores). Jesus disse no Sermão do Monte: “o Pai sabe o de que vocês têm necessidade” (Mt 6.8).
No terceiro conjunto de pergunta e argumento, Paulo aborda o medo da culpa: “Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus?” Todos nós estamos sujeitos a diversas acusações: “Você não é bom o suficiente.” A resposta subentendida à pergunta é negativa: não, ninguém poderá acusar os amados de Deus. Mas analisemos a resposta polêmica positiva: sim, quem pratica o amor está sujeito a acusações, seja perante a justiça, à opinião pública e até perante sua própria consciência. A 1ª Epístola de Pedro diz: “ainda que venham a sofrer por causa da justiça, são bem-aventurados” (3.14, 17; c/c 4.14-15). Portanto, viver uma vida de amor não nos livra de acusações. O argumento de Paulo para a resposta negativa é que Deus nos elegeu (“eleitos”) e justificou (perdoou). Portanto, o único que tem poder para nos condenar, não o fez. Pelo contrário, concedeu perdão e graça. Se o supremo juiz nos perdoou, nenhum juiz menor poderá nos condenar na prática do bem.
O quarto conjunto de pergunta e argumento aborda o mesmo tema do medo da culpa, num estágio mais avançado. Se antes, o problema era a acusação, agora é a condenação: “Quem os condenará?” A resposta subentendida é negativa: não, ninguém condenará os amados por Deus. Mas, novamente, o risco de condenação não está afastado. O próprio Jesus foi acusado e condenado à morte. Então, a resposta polêmica positiva é: sim, aqueles a quem Deus ama podem ser condenados nos tribunais humanos, mesmo na prática do bem. O argumento de Paulo para a resposta negativa é que Jesus, mesmo condenado perante os tribunais, foi absolvido por Deus, que reverteu sua morte pela ressurreição. Jesus não apenas está vivo, mas “intercede por nós” (c/c 1Jo 2.1-2). Na ressurreição de Jesus, Deus revogou toda condenação.
Finalmente, o último conjunto de pergunta e argumento é mais amplo e inclui uma resposta retórica em forma de pergunta e a resposta final. A pergunta aborda o medo da solidão: “Quem nos separará do amor de Cristo?” Pressupõe o risco de separação e rejeição. Ao contrário dos conjuntos anteriores, aqui há uma resposta retórica que enumera sete hipóteses em forma de pergunta: “Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada?” Essa resposta retórica faz o papel da resposta positiva: sim, todas essas coisas podem nos separar do amor de Cristo, porque quem ama protege, provê e perdoa a pessoa amada. Se Deus é por nós (Argumento 1), por que sofremos “perseguição” e “perigo”? Se Deus nos deu todas as coisas (Argumento 2), por que sofremos “fome” e “nudez”? Se Deus nos justifica (Argumento 3) e Jesus intercede por nós (Argumento 4), por que sofremos “tribulação”, “angústia” e “espada”?
O Argumento 5 cita o salmista — “Como está escrito: Por amor de ti, somos entregues à morte o dia todo, fomos considerados como ovelhas para o matadouro” (Sl 44.22), — mas apresenta um final surpreendente: “Em todas estas coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou.” No Salmo 44, o salmista se vê como ovelha separada para o abate, marcado para morrer, como alguém que já é contado como morto. Ele então grita a Deus: “Desperta! Por que dormes, Senhor?” (v. 23). De onde vem o final surpreendente? Do servo sofredor em Isaías 53.7, “como cordeiro, foi levado ao matadouro”, e “como ovelha, muda perante os seus tosquiadores, ele não abriu a sua boca”. Ele foi “cortado da terra dos viventes” (53.8). Jesus ou por “todas essas coisas” antes de nós e se tornou o “mais que vencedor” por meio do amor de Deus. Assim, por ele, nós também “somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou”.
A grande resposta final responde à pergunta 5 e a todas as perguntas anteriores. A resposta negativa é explícita: não, nada ou ninguém pode nos separar do amor de Deus — morte, vida, anjos, principados, poderes, coisas do presente ou futuro, altura, profundidade, qualquer criatura. Essa é a grande conclusão do apóstolo Paulo: não existe nada capaz de separar o ser humano do amor de Deus. No Cristo encarnado, a união de Deus e ser humano é irreversível e intocável.
Mas haverá possibilidade de resposta afirmativa? Sim, há alguém que pode me separar no amor de Deus. E esse alguém sou eu mesmo. Apenas eu mesmo posso me separar do amor de Deus, porque o amor, por sua própria natureza, não se impõe, apenas atrai e convida. Pode ser que a mensagem do amor de Deus encontre corações endurecidos pelas dores, pelas tristezas, pelas decepções. Mas não há notícia maior do que esta: o Deus revelado em Jesus ama o ser humano infinitamente e nada pode impedir esse amor.
Eliseu Pereira é mestre e doutor em Teologia, membro da Igreja Liberta em Curitiba-PR e do canal Teologia Pé no Chão.
Bom ser lembrado de que nada pode nos separar do Cristo ressurreto
Como é belo o amor de Deus, apenas nós somos capazes de o repelir.
Obrigado professor por seus ensinamentos.